segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

MANUEL GAMBOA EM IMAGENS

domingo, 17 de fevereiro de 2008

A OSGA JOAQUINA...




Um crítico que nunca viu uma osga na parede não entende a actual pintura de Manuel Gamboa...

Gamboa confessava-me há dias que uma tela em branco em cima do cavalete mete-lhe medo: precisa encher imediatamente a paleta de cores e então uma força demiurga agarra-lhe nos pincéis e todo o Universo entra-lhe de rajada pelo atelier adentro, para dissipar o tenebroso nevoeiro branco da tela! A sua pintura vai surgindo, quase onírica, numa serena alegria de cores e formas, onde o figurativo e o abstracto se equilibram, num expressionismo panteísta. Uma lagarta, o canto do galo, uma folha, uma memória longínqua, um triste arlequim colorido, uma página em árabe de um velho livro de visitas, o céu azul riscado por um pássaro branco, o véu da noite rasgado de estrelas, uma nesga de mar ao fundo, os ecos de uma paixão, de muitas paixões, os seios generosos da serra ao longe, a negra Joaquina à noite na parede do atelier a caçar insectos, os sinais eternos, os olhos sempre de frente, mesmo em rostos de perfil, a afastar maus-olhados e a espelhar as almas...Tudo isto se harmoniza, num todo muito estranho para a razão, mas muito coerente para a intuição.

Se o Gamboa como homem é ateu, como artista é um místico.

O processo criativo do Gamboa tem um forte carácter mediúnico. O seu génio (como qualquer génio) não cria nada de novo: ele é um canal que nos revela as dimensões invisíveis da natureza. Na verdade, nada é abstracto na sua pintura. Ele agarra-nos a sensibilidade para um mergulho no fundo desses mares desconhecidos que há em tudo, no céu e na terra, principalmente nas coisas mais simples, e mostra-nos a beleza, o pulsar da vida nesses “imensos corais ocultos”, onde existem bem reais e concretos todos os arquétipos, todas as imagens que inspiram os mais sublimes artistas, mesmo aqueles considerados os mais abstractos dos abstractos.

O Gamboa também sabe que os verdadeiros artistas não nasceram para ter honrarias: o seu génio tem de estar acima dessas ninharias, pois um artista em terra de cegos não deve ser um rei, mas um profeta com a imensa responsabilidade de iluminar a nossa insignificância de vermes, inspirando-nos a tecer um casulo de emoções verdadeiras: o único santuário onde o homem pode cumprir a sua metamorfose desde o caos animal ao cosmos divino.

João de Lagoa

UM GRAVADOR PORTUGUÊS EM HAMBURGO



Na torrente diária de conferências e debates, exposições e colóquios que animam a vida cultural da grande cidade hanseática, um acontecimento que não pode ignorar-se: o pintor português Manuel Gamboa expõe numa galeria de Hamburgo (Café Latin) as suas criações mais recentes, uma série de mais de trinta linóleos a cores, entre os quais se destaca um tríptico de dimensões excepcionais nesta técnica (1,28m de altura e mais de 3m de comprimento total).

Não é muito frequente depararmos em cidades alemães com exposições de artistas portugueses (esperemos que o acordo cultural recentemente firmado entre os dois países venha melhorar a situação, neste e noutros campos). E o encontrar-se um nome português é uma vergastada salutar no espírito de quem embora afastado do país, procura não perder o contacto com as mais importantes manifestações espirituais portuguesas (o que nem sempre acontece, porque nem sempre é fácil). Recordo com admiração e o entusiasmo que senti quando, no Verão de 1964, deparei com uma exposição de gravuras de Bartolomeu Cid numa escola de uma pequena cidade da região do Ruhr (Marl). Como Bartolomeu Cid ali foi parar, não sei. Sei que ele lá estava, e é o que importa. Mas não nos iludamos, porque satisfações destas são raras. O panorama cultural português é mal ou falsamente conhecido na Alemanha. E quando algo aparece, é mal compreendido, toma-se a parte pelo todo, aventuram-se juízos de conjunto a partir de manifestações isoladas e de modo algum representativas (lembre-se o caso recente de um crítico do jornal “Die Welt” que, partir da tradução alemã da “Vindima” de Torga, fazia toda uma série de considerações gerais – e falsas …sobre a literatura portuguesa actual). Um campo em que o conhecimento de Portugal se vem generalizando mais é o turismo, graças a uma propaganda orientada pelas entidades responsáveis e interessadas. Aqui – no campo cultural – como ali – no do turismo – é preciso fazer “propaganda” – por meios diferentes, utilizando canais de divulgação diversos, como é evidente, mas, de qualquer modo, fazendo essa divulgação necessária. Muitas vezes é feita mais pela parte alemã do que pela portuguesa.

É, pois, de assinalar mais esta centelha portuguesa em terras germânicas, que é a actual exposição de Gamboa. Manuel Gamboa vive em Hamburgo há cerca de cinco anos. Esta afirmação directa, estilo relatório, encerra um significado mais profundo do que aquele que deixa entrever à primeira vista. Não é fácil para um pintor livre e estrangeiro “viver” (e portanto pintar...e vender) em Hamburgo. Para o compreendermos teremos de conhecer o público e o meio hamburgueses, fechados em si, uma aristocracia comercializada e uma massa mecanizada e materialista que, se por acaso compra quadros, o faz com a intenção de que esse quadro vá contribuir para a Gemutlichkeit (palavra difícil ou impossível de traduzir que contém algo de conforto burguês, arranjo e ordem convencionais...) da sua casa. E isto nem sempre o verdadeiro artista lhe pode oferecer (e Gamboa não vai, certamente, ao encontro desses desejos). Há, depois, as élites, que criticam, apreciam, discutem – mas não compram. Há ainda toda a série de dificuldades e obstáculos que o artista estrangeiro, só numa cidade como esta, encontra para expor os seus trabalhos e se tornar conhecido. “É mais fácil um pintor tornar-se conhecido em Portugal num ano, do que em Hamburgo em dez”, diz-me Gamboa na última visita que lhe fiz e durante a qual, num bate-papo de cinco horas, ele me leu algumas páginas soltas de um possível livro de memórias – por enquanto manuscrito de gaveta – em que transparece a imagem que de Hamburgo ele se faz. Imagens de ruas, de pessoas cinzentas e monótonas, asfixiantes ou libertadoras, por entre as quais o pintor passeia, guiado pela mão leve, imaterial, da sua intuição artística – do seu “arlequim de duas máscaras”, como ele próprio lhe chama numa das passagens dessas páginas manuscritas. Nestes escritos, como nos quadros, transparece uma dualidade sempre presente em Gamboa: um passado morto-vivo e um presente espiolhado e vivido intensamente, o Mediterrâneo e o Norte da Europa, a criança naïve e o adulto experimentado, a poesia do deleite e a poesia da violência. E, como elo de ligação, um profundo conteúdo humano e uma acentuada força de expressão, que estão na base de toda a sua actividade artística.

A presente exposição de Gamboa é a segunda que realiza em Hamburgo (a primeira, em que apresentou óleos, teve lugar no Verão de 1964), e é o resultado de estudos pessoais recentes sobre os problemas e a técnica da gravura, que se materializaram na colecção de linóleos a cores, patentes nesta mostra.

Não era fácil – nem acertado – procurar filiar estas últimas criações de Gamboa neste ou naquele pintor ou movimento modernos. Já um 1959, criticando em “Colóquio” o 1º Salão de Arte Moderna da S. N. B. A, José-Augusto França se referia a Gamboa nos seguintes termos: “Brutamente colorista...e com uma intuição admirável, ignorando culturas...” (o sublinhado é meu). Podem, no entanto, notar-se nestes linóleos traços evidentes de um convívio com os expressionistas alemães. Há mesmo duas gravuras que o autor associou directamente a nomes de pintores alemães: A Macke e Max Beckmann (também no mesmo artigo de 1959, José-Augusto França escreve ainda que “Gamboa reencontra uma exuberância e uma violência expressionista que fora de Amadeo de Sousa-Cardozo”).

Para além, e acima de quaisquer influências há, porém nestes linóleos a expressão de uma experiência e de uma técnica pessoalíssimas. Transparece neles essa síntese (ou, como disse um crítico alemão na abertura da exposição, a concretização de uma Wahlverwandtschaft, ou “afinidade electiva”) de dois mundos diferentes que foram assimilados no espírito do artista e plasmados em mancha de cores e vazios: o mundo do Sul e o mundo do Norte, o Algarve e Hamburgo, o passado ainda e sempre espicaçante e vivências actuais intensamente experienciadas e detalhadamente captadas e transmitidas numa expressão abstracta de harmonias de cores, de esquemas formais, de signos, números e nomes, que preenchem o espaço num bailado desordenado, mas em que é possível descobrir, para cada gravura, uma orientação dos motivos pictóricos segundo certas linhas fundamentais, e para o todo uma unidade formal.

Por vezes irradiando, explodindo a partir de um núcleo central, outras vezes pairando dispersos por todo o espaço, as manchas e traços brancos, não impressos, sobrepõem-se por vezes – quase sempre – pela sua importância na economia da gravura, às zonas impressas a cores. Tomam por vezes a forma de letras, signos ou palavras inteiras. Essas manchas e traços são de importância fundamental para a compreensão do “movimento” da superfície do quadro e traduzem, quando transplantados para o campo do “letrismo”, quer uma intencionalidade de raiz emocional, quer uma contribuição de carácter decorativo ou um apoio expressivo para a linguagem das cores que, apesar da evolução efectuada com estes linóleos, continua a ter papel de relevo na obra de Gamboa. Servindo-se de uma linguagem formal puramente abstracta (à excepção do grande tríptico), este linóleos de Gamboa não se desumanizam nem se esterilizam, antes vive neles uma fecunda animação de motivos simbólicos que lhes conferem um carácter vital e espontâneo. José-Augusto França pisou talvez uma tecla acertada ao dizer que Manuel Gamboa “ignora culturas”. Uma outra tecla que me parece também acertada e cuja nota se eleva, na sua intensidade, acima das outras, foi aquela em que, aquando da primeira exposição de Gamboa em Hamburgo, tocou o crítico de artes plásticas do jornal “Die Welt”, Hans Teodor Fleming, ao afirmar: “Sente-se que este artista é um temperamento de pintor, impulsionado por uma autêntica necessidade de pintar”. Aos dez anos pintava Gamboa no Algarve, sob o incitamento de um esquecido Ti Inácio, o seu primeiro quadro! (Um retrato de camponês, hoje na posse do Arquitecto Keil do Amaral). Hoje vive, independente, na sua revolta num espaço norte – europeu, que não é o seu, contra o qual ele reage, mas cuja essência não deixa de captar, para a transportar para estas suas últimas gravuras.


João F. S. Barrento, in Jornal de Letras e Artes, nº 244, 15/6/66, Lisboa

MANUEL GAMBOA





Manuel Gamboa pertence à geração de pintores neo-realistas que teve de abandonar Portugal para continuar a sua obra.

Nascido em Lagoa (Algarve), em 1925, depois de uma individual na Galeria DN, em 1958, decidiu partir, dois anos mais tarde, para Paris, onde não ficou muito tempo. Escolheu Hamburgo (Alemanha) e, decorridos que foram 30 anos, voltou ao seu país natal, não para ficar, mas para se dividir entre estas duas terras.

É, de facto, na Alemanha que a sua pintura tem bastante significado. Os seus temas, apesar de temperados por uma certa disciplina germânica, mostram que se mantêm fiéis a uma determinada linha de pensamento. A mesma com que o pintor saiu de Portugal.

Na representação do ser humano as suas obras inspiram-se na expressão do corpo e do rosto, quase sempre humilhados, submissos e silenciosos, mesmo quando enquadrados em temas festivos. As suas personagens testemunham o sofrimento moral, voltadas para o vazio ou para uma realidade insondável, como o sentimento de uma perdição. Mais próximas do Além do que da morte, elas movimentam-se num circo fora do tempo.

Feitos de vida interior, estes seres reflectem-se no olhar; os olhos são dois poços rasgados pelo pincel, que nos seguem continuamente, nos criticam, ou ainda nos gozam sem piedade. Desfiguradas pela própria angústia, estas imagens frágeis parecem dotadas de fibras emocionais: símbolo de uma convicção pessoal? Quem sabe? Esperam algo, talvez uma força superior, positiva e construtiva que não chegará com facilidade.

No entanto, esta pintura selvagem não deixa de ter, contraditoriamente, uma tónica expressiva de alegria de viver. Gamboa diverte-se a criar os seus filhos e a dar-lhes os brinquedos mais díspares possíveis (aqueles a que provavelmente o pintor nunca teve acesso). Brinquedos e filhos passam por nós rindo e fazendo caretas porque estamos do lado de cá, vivos, cansados e desanimados.

As tonalidades sempre vivas, com grafismos pretos para delinear e animar, invadem os espaços, já bem preenchidos de uma multidão de cores em movimento, para formularem vibrações explosivas de Paraíso Perdido convertido em pintura que faz a festa. Também há muita eficácia, talento e audácia nas composições.

Reconhecíveis que são as figuras neste enquadramento de cores, elas inserem-se numa composição abstracta onde o espaço, suspenso entre a plenitude e o nada, se integra numa só cor, dada no princípio. Assim Gamboa põe em cena a ambivalência de uma visão intuitiva; os parâmetros obscuros da mente ou o enigma de uma substância. O conteúdo acorda a consciência de uma vida interior, fazendo ressurgir o índice de uma memória colectiva.

Poder-se-á dizer, neste caso, que se trata de um modo de conhecimento, como uma forma de conjuração dos fantasmas do artista, e ainda, como o meio de conseguir um equilíbrio pessoal, muito peculiar.

Ávido de obter qualidades emocionais. Gamboa realça os paradoxos do efeito visual: numa desenvoltura contraditória, a linha apaga o que seria de esperar que privilegiasse ou evocasse, revelando os meandros do instinto criador, é nesse momento, ao mesmo tempo lúcido e ambíguo, que o pintor encontra o centro da estabilidade.

As linhas afloram a untuosidade da matéria e realçam o sentido de ascensão ou movimento fugidio. Gamboa parece desafiar as leis do visível, criando sensações, sinais ou ainda imagens inéditas.

Dotado de uma análise figurativa, e de uma observação do real, a sua tentativa (sondagem) deixa transparecer a expressão de uma necessidade interior; cada elemento refere-se a uma existência autónoma, independentemente do contexto que a rodeia. Nem mensagem, nem anedota...mas desejo de afirmar, pela e na pintura, a existência de uma visão fictícia.


DN – 13.1.91


Por: Margarida Botelho, in “80 Artistas em Portugal”

MANUEL GAMBOA NAS PALAVRAS DUM POETA AMIGO



Foi nos anos 50 que conheci Manuel Gamboa em Lisboa. Nessa época a vida cultural e artística era intensa, com tertúlias assíduas nos cafés, jornais com suplementos regulares de artes e letras, revistas literárias diversas, grupos de teatro e cineclubes que desenvolviam uma actividade cultural importante, não obstante as limitações impostas pelo antigo regime. Estas associações e tertúlias eram verdadeiras universidades abertas, onde todos aprendiam tudo uns dos outros, nelas se tendo formado toda uma geração de poetas, romancistas, ensaístas, críticos, pintores e cineastas que viria posteriormente a afirmar-se. E havia uma sede enorme de cultura, muita luta e sonho, entusiasmo e ideais.

Foi nessa altura que conheci Manuel Gamboa e que a nossa amizade se formou, conservando-se ao longo de todos estes anos, não obstante tantas e tantas mudanças que o mundo sofreu à nossa volta desde então.

Encontrei desde sempre nele uma grande determinação pela pintura, força e vontade de seguir em frente na concretização do seu projecto de vida, apesar de todas as dificuldades semeadas pelo seu caminho.

Muitas vezes subi as escadas da água furtada onde vivia no Bairro Alto para ver os seus trabalhos. Outras vezes ficava a vê-lo pintar, a espalhar as linhas e as cores na tela, assistindo ao nascimento dos temas expressos com a sinceridade da sua personalidade vigorosa e apaixonada pela vida. Uma pintura aplicada na sua expressão, ao mesmo tempo misteriosa e rigorosa, alimentada por uma imaginação que procura captar os seres e as coisas e revelar-nos, pela síntese de tudo o que as linhas e a composição cromática podem exprimir, o reflexo da alma humana e o dramático e surpreendente sentimento de viver, a busca apaixonada do seu sentido poético.

Os traços corridos e o prazer da cor reflectiam o seu individualismo, mas também o seu sonho de abarcar todo um universo que só a imaginação pode alcançar, paisagens que nunca vimos, pessoas que nunca existiram, a luz perdida na desordem ou na harmonia, a fulgurância evidente do silêncio de um mineral, as ruas de uma cidade virtual, a síntese das pessoas em um só ser, enfim, a expressão dos sentimentos mais perplexos da observação da natureza e que ela pode inspirar.

O seu sonho universalista e o desejo de viver num mundo que sempre acalentara e o solicitava levaram-nos a deixar o País em 1960, na busca do enriquecimento da sua experiência humana e artística.

E assim foi até Paris, mas o desencanto proporcionado pelos círculos da emigração que aí conheceu e pela pintura cosmopolita incaracterística que aí viu acabou por o desencorajar. E decidiu ir mais longe, até Hamburgo, de que ouvira falar como uma cidade enorme, dinâmica, cheia de oportunidades e, também, com um rio.

Acompanhei esta sua fase difícil de adaptação e integração, através da correspondência que trocávamos. Foi uma luta de sobrevivência e renascimento para uma nova vida, que acabaria por o recompensar com o reconhecimento do seu talento.

Depois da minha ida para Paris em 1964, encontrámo-nos por diversas vezes, o que me deu oportunidade de continuar a seguir a sua carreira e de conhecer diversos trabalhos seus. E tive assim o grato prazer de me congratular com as manifestações de apreço e louvor que lhe eram testemunhadas pela qualidade e originalidade da sua obra. Obra que alia a capacidade inventiva do iberismo com a assimilação da força e disciplina germânica, mas que se manteve sempre fiel e inspirada nos temas memorizados na sua raiz portuguesa, figuras e rostos silenciosos que nos fixam sem conseguirmos ver-lhes os olhos, bem como todo o carnaval da nossa vida.

Não são muitos os artistas entre nós que, como Manuel Gamboa, conseguem criar uma obra tão extensa, meritória e original, tudo alcançando a partir do quase nada, apenas pelo seu génio, trabalho e perseverança. Por isso ele nasceu, não para nos deixar, mas para ficar para sempre entre nós.


Fernando Ilharco Morgado, in catálogo da Exposição – Retrospectiva de Manuel Gamboa, Conv. S. José, 1995

UM CÂNTICO À VIDA



...ele havia de pintar um cântico à vida! Gamboa, Manuel Gamboa, o pintor, o artista plástico e o homem, têm vivido sempre juntos. Vêm de longe, do tempo em que a vivência (grupal e boémia) e os actos exibitórios dos artistas portugueses reflectiam – e davam-lhe interpretação plástica – o vigor contestatário dos intelectuais, traduzido em expressões visuais do afrontamento e do combate, contra o racionamento cultural, imposto à sua pátria pelo regime pré-histórico de Salazar.
Conheci-o (pela mão de Artur Bual), nesse ano distante de 1959, na ocasião em que a polícia política lhe interrompera – nunca se saberá porquê (?) – uma das suas primeiras mostras individuais de desenho e pintura . O nosso efémero relacionamento estreitar-se-ia, e uma grande empatia acabou ficando, intacta e difusa, suspensa, no ar, reminiscente da convivialidade néon-realista do Café Gelo e omniversal da Brasileira do Chiado, para onde convergiam as mais peregrinas figuras da cultura lisboeta da nossa contemporaneidade.
Entre o Gamboa de hoje e o de então, são escassas (conquanto perceptíveis) as diferenças, quer na postura, perante a Arte, quer, de atitude, perante a Vida, como se a eternidade lhe estivesse mentalmente diluída, no âmago do ser.
Numa época em que as cores delirantes eram, geralmente, tímidas, na pintura vulgarmente exposta, já os seus quadros se distinguiam berrando alto, na ginástica contorcionista, algo caricatural e primeva das suas formas, subjugadas à estrutura livre de um desenho muito fluido e, paradoxalmente, firme, na sua caligrafia.
Então – bem menos que hoje – Gamboa sentia-se estrangeiro, amordaçado, cheio de uma tremenda vontade de atravessar fronteiras e respirar o sonho libertário do anarco-surrealismo, dominante nos grupos que, em Lisboa, integrava , na luta contra as políticas de caixinha, as cliques e capelas (os mini-lobbies dessa altura).
Por isso se passou para Marrocos, saltaria para Paris e acabou, retido por amor, durante décadas, em Hamburgo , onde fez carreira, antes de regressar e se fixar, no reduto algarvio de Vale d’el Rei (perto de Ferragudo, sua terra natal), em Lagoa.……………………………………………………………………
As obras que, hoje e aqui, são exibidas – na Galeria que tem por patrono o seu dilecto amigo Artur Bual – evidenciam-no como um dos casos mais verdadeiramente atípicos da pintura portuguesa mais notável, em meio século, pela sua originalidade autêntica, pela genuinidade elementar do seu processuário técnico, na sintaxe da sua linguagem, na semântica da sua expressão comunical.
Não se tratará, senão, afinal, de páginas únicas de uma biografia autografada, edificadas sobre tela, em composições de grande simplicidade. Só isso – por força da sua natureza – o impõe à notabilidade.
Cada uma dessas páginas é um livro compactado, elaborado a partir de marcas residuais profundas, onde se projectam, com singular candura poética, a vestigialidade memorial recorrente da sociedade e dos universos contemporâneos, convertida na perene simbologia de pictogramas poéticos. E eles surgem organizados como imagens-fetiche, estruturados sob o rigor da mais depurada inspiração, porventura tão primitiva como a da arte totémica , associada à exactidão da escrita hieroglífica, conjugada a caracteres alfanuméricos árabes e sino-nipónicos, latinos e cirílicos, onde se radicam mensagens compactadas da sua jovialidade, do seu tendencialismo erótico-sensual e desse raro sentido epicúreo, que nunca o abandonará. ...ele havia de pintar um cântico à Vida!


José-Luis Ferreira - Lagoa, Março, 2005

...E O GAMBOA, NO MEIO DE TODOS



«…olhando para trás, nas minhas recordações, passando as olhos pelos retratos da minha vida, há uma pergunta que me vem à cabeça: desde que tivemos casa própria – o Artur e eu – nunca percebi, ao certo, se o atelier ficava dentro dela ou se ela ficava dentro do atelier!

Lembro-me de centenas de pessoas (muita gente das artes e das letras), com quem tive o privilégio de conviver, de receber e visitar, em metade do século passado.

De entre todos, a imagem de alguns ficou sempre em lugar de destaque. Aquilo que faziam, o modo como se apresentavam e falavam, as suas diferentes maneiras de estar, aqueles e aquelas que os acompanhavam e, sobretudo, a admiração, a lealdade e o afecto que pressentia neles pelo meu Homem!

Talvez por isso, esqueci muitos nomes e outro nunca esquecerei. Alguns desapareciam e voltavam. Outros abandonaram a própria vida.

Estou sempre a ver aqueles que, entre a Brasileira e a Amadora (por um só momento, ou longos e remotos anos), estiveram mais próximos, como o Relógio e o d’Assumpção, o Fausto Boavida e o Palmela, o Arnaldo, Figueiredo Sobral e o Cargaleiro, o António Lino, Manuel Borges e o Fragoso, o Hilário, o Infante do Carmo, o Belo Marques, o Vasquinho Fernandes, o Eduíno, o Zé Luís Ferreira e o Miguel Vasques, o Pernes, o Fernando Guedes, o Almada, o Raul Rego, a Natália Correia, o David e o Martins Correia …tantos outros e, no meio deles, o Manuel Gambôa, sempre de ida-e-volta da Alemanha, muito alegre e mexido, cheio de humor, desenhando e pintando duma forma muito especial que o Artur apreciava, estimulava e louvava, constantemente.

E, mais recentemente, na Caparica, na Amadora e em Lagoa (já regressado de vez a Portugal) o nosso Manuel Gambôa cheio de vitalidade, continua a ter a admiração enorme que o seu trabalho artístico merece incontestavelmente.»


Guilhermina Bual (mulher do pintor Artur Bual) - Fevereiro 2005

CURRÍCULO DO PINTOR MANUEL GAMBOA




SÍNTESE BIOGRÁFICA

Manuel Rosário Gamboa das Neves


Nasceu a 24 de Maio de 1925, em Lagoa, Algarve.
Viveu em Lisboa, em casa de seu pai, desde 1932 a 1944 e volta para o Algarve, aos 19 anos, de onde parte, rumo a Marrocos, onde permanece durante apenas um ano.
Artista plástico vocacionado, desde a infância pré-escolar, revela tendências imperativas para o desenho e a pintura.
Autodidacta com elevado grau de exigência técnica e estética, inicia a carreira artística nos anos 50, frequentando os meios culturais e ateliers de vários artistas de Lisboa, salientando-se Artur Bual, Francisco Relógio, Rui Filipe, os irmãos Bronze, Charrua, M. Cargaleiro, D’Assumpção, Gonçalo Duarte, Figueiredo Sobral, Mário Silva e Hilário Teixeira Lopes …e com algumas das mais sólidas referências tradicionais, do modernismo e do futurismo, como Abel Manta, Jorge Barradas e Almada Negreiros.
Mantém convivência estreita com poetas e escritores seus contemporâneos, como Manuel de Castro, J. Pressler, Herberto Helder. David Mourão-Ferreira e Natália Correia, lado a lado com Virgílio Ferreira e Sttau Monteiro, Aquilino e Tomaz de Figueiredo.
Em princípio de carreira, foi subsidiado pela Fundação Calouste Gulbenkian nos seus estudos e aprendizado e, em 1960, visita Paris, onde vive temporariamente em casa do pintor D' Assumpção.
Ao longo da sua obra, resultante heterogénea de imensa produção, cultiva dominantemente a Pintura, o Desenho e a Escultura, mas experimenta e, pontualmente, ensaia ou realiza, trabalhos, em quase todas as modalidades plásticas e visuais: cerâmica, tapeçaria, arte pública e monumental.
A sua obra gráfica é particularmente apreciável, quer no desenho, quer na gravura (linóleo, serigrafia), na monotipia e no batik (pintando sobre tecidos, em modelos originais de vestuário).
Perdidas, muitas vezes, sob o aspecto injusto do anonimato, são notáveis algumas das suas criações gráficas no campo (outrora menor) da ilustração da caricatura e do humorismo (cartoon) ou, mais esporadicamente, do grafismo mural e do cartaz.
Em 1964, assumindo uma recomendação do escultor e ceramista Hein Semke (radicado em Portugal) instala-se em Hamburgo, onde se fixa, frequenta o meio sociocultural e exerce intensa actividade artística profissional, permanecendo na Alemanha, até 1987.
Desde 1960 a 1964, dedicou-se ao estudo da História de Arte, frequentando ciclos de conferências-livres e seminários, na Universidade de Hamburgo.
…em finais dos anos oitenta, regressa a Portugal, construindo a sua casa-atelier em Vila d’el-Rei – Lagoa, sua terra natal.
Neste retiro – à margem do calendário – prossegue, dia-e-noite, o incessante trabalho a que consagrou, já (ou só, ainda!), oito décadas de ímpar existência, construindo o monumento poético de um verdadeiro cântico à vida.

PRINCIPAIS EXPOSIÇÕES
INDIVIDUAIS


Pintura e Desenho, Galeria Diário de Notícias (apoio Fundação Calouste Gulbenkian) – Lisboa, 1959 ● Bücherhalle (1.ª individual alemã) – Altona Hamburgo, 1964 ● Galerie Latin – Hamburgo, 1966 ● Galerie Die Brücke – Bielefeld, 1967 ● Palmengarten – Frankfurt, 1968 ● Pintura e Tapeçaria, Palácio Foz (ex-SNI) – Lisboa, 1969 ● Pressezentrum (apoio Cônsul de Portugal Dr. Grainha do Vale) – Hamburgo, 1972 ● Galeria Zeitgenossishe Kunst (intervenção pictural em fotografia original de Rui Santos) – Hamburgo, 1973 ● Arte Invervenção / patrocínio jornal DKP (protesto contra especulação imobiliária e o desalojamento compulsivo de residentes) – Eppendorf, 1976 ● Galeria Werkstatt (iniciativa cultural da Goldbekhaus, intervenção do caricaturista Karl Schoenfeld) – Hamburgo, 1977 ● Galeria Metzner – Hamburgo, 1979; 1981 ● Ahrensburg Rathaus / Salão Nobre (intervenção do Prof. Dr. Konrad Dilger, do Max Blank Institut) Ahrensburg, 1981 ● Retrospectiva - Sporthotel Quickborn, (homenagem cultural organizada pela Câmara Municipal de Lagoa) 1984 ● Galeria Stüdio – Rastede, 1984 ● Pintura e objectos, Galeria Atelier 1 – Hamburgo, 1986 ● Desenho (tinta da china), Aguarela e Objectos, Galeria Ingo Faerber – Ahrensburg, 1987 ● Pintura e Objectos, Lãngste Galerie Hamburgs – Hamburgo, 1987 ● Kunstmeile Eppendorfer – Hamburgo; 1988 ● no âmbito do evento anual FATACIL – Lagoa, 1990 ● Almadarte Galeria – Costa de Caparica; 1994 e 1995 ● Museu de Arqueologia (convite do Arq.to Varela Gomes), Silves – 1995 ● Retrospectiva (homenagem 70º aniversário, promovida pela Câmara Municipal de Lagoa, organizada pela Casa da CulturaConvento de S. José, na Galeria de exposições temporárias a que fica atribuído o seu nome) – Lagoa, 1998 ● Galeria Santiago – Palmela; 1999 ● Galeria de São Bento, Lisboa, 1999 ● Galeria Municipal Artur Bual – Amadora, 2005


ALGUMAS EXPOSIÇÕES
COLECTIVAS, CONJUNTAS E DE GRUPO


Inicia carreira, em 1950, exibindo trabalhos entre amigos e aproveitando as escassas oportunidades de exibição pública em mostras privadas e de grupo ● Acede aos escassos e restritos meios de então e concorre a certames colectivos, em Lisboa ● Revela-se na Casa dos Estudantes do Império e participa na Exposição Itinerante de Artistas Modernos emergente de acções promovidas por iniciativas afectas aos movimentos culturais das pró-Associações e Associações de Estudantes das Universidades Clássica, Técnica e Politécnica de Lisboa, alargados a Almada e Setúbal…


…expõe em salões, certames e exposições colectivas promovidas em Lisboa: na sede do Sport Lisboa e Benfica (Baixa lisboeta) ● no Teatro Apollo ● e no Teatro de Maria De Lacosta, (S. Paulo / Brasil), tornando-se um dos mais assíduos colaboradores, desde 1950 ● Exposição de Artes Plásticas das Associações dos estudantes de Lisboa. ● 1º Salão de Arte Moderna da Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1958 ● “50 Artistas Independentes”, Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1959 ● Participa na exposição com o pintor D'Assumpção e o caricaturista Benjamim Marques 1960 ● Galerie Café Latin, Hamburgo. Exposição com Franz Pozar, no âmbito da Semana Internacional do Filme – Stadthallen, 1966 ● Studio Galerie, Lubeck. Exposição itinerante de Arte Moderna Europeia (Madrid, Tóquio, etc.), 1966/68 ● Galeria Mensch, Hamburgo, 1966 ● “Maias para o 25 de Abril”, Galeria S. Mamede, Lisboa; 1974 ● Galeria Schnecke, Hamburgo; 1977 ● Participa em entre 100 artistas, numa exposição de pintura Desenho, Escultura, Colagem, Fotografia e Gravura, condenatória da utilização indevida da energia atómica, Hamburgo, 1978 ● 1" exposição itinerante Mundial de Artistas contra a Energia Atómica. Galeria Stange, Hamburgo; 1981 ● Galeria Kunstverein, Hamburgo, 1984 e 1988 – 2º Aniversário da Almadarte Galeria, Costa da Caparica; 1989 ● Organiza e participa na I Anual de Arte Moderna, promovida pela Câmara Municipal de Lagoa, Palacete Cor-de-rosa, Lagoa. Almadarte Galeria, Costa da Caparica ● Forum, Lisboa; 1990 ● Galeria Almadarte, Exposição - Outono, Costa da Caparica; ● "Abril - Amadora",Galeria Municipal da Amadora, acervo da Almadarte, Amadora 1991 ● Exposição Internacional no Convento de São José, Lagoa; 1991 ● Homenagem ao pintor D'Assumpção, Galeria Municipal de Portalegre; 1992 ● Inauguração no Convento de São José como organismo cultural da Câmara Municipal de Lagoa; 1993 ● organizada pela Almadarte Galeria, na Galeria Municipal de Pombal; 1994 ● Galeria do Casino Park Hotel, Madeira organizada pela Almadarte, Funchal, 199? ● Galeria Municipal de Pombal organizada pela Almadarte Galeria na. ● Artistas Algarvios organizada pela Casa do Algarve de Almada; Almada, 1995 ● Galeria São Pedro, Faro. 199? ● Santiago Galeria, Palmela. 199? ● Homenagem da Câmara Municipal de Lagoa 1997 ● “In Principio” COLECTIVA DE PINTURA E ESCULTURA SANTIAGO Galeria de arte – Palmela, 1998 ● Galeria de Exposições Direcção Geral da Administração da Justiça, Lisboa. 2004 ● Feira de Arte do Estoril 2005

BIBLIOGRAFIA passiva

José-Augusto França «Pintura Portuguesa» referência Lisboa, 1957
Fernando Pamplona «Dicionário de Artistas Portugueses» referência - Ed. Lisboa, 19
Margarida Botelho «80 Artistas em Portugal» referência capitular - Lisboa, 1991
Joaquim Saial «MANUEL GAMBOA – a arte por vida» Ed. C.M. de Lagoa, 1998
Jean-Pierre Blanchon «Guia do Investidor 1999/2000» referência Estar Ed., Lisboa, 1999
José-Luis Ferreira «GAMBOACÂNTICO À VIDA» Ed. C.M.L./Conv. S.José – Lagoa, 2005 (inédito, a lançar no evento)

HEMERÓTICA

Recensões críticas, prefácios/catálogos, depoimentos autores portugueses e alemães de relevância (ordem alfabética)

A. Zum Winkel ● Abílio Febra ● C. O. F. ● Cátia Mourão ● Dieter Thiele ● Dietrich Schellert ● Eduardo Nascimento ● Elisabete Rodrigues ● F. Barrento ● Fernando Ilharco Morgado ● Guilhermina Bual ● H . T. Flemming ● H. Ehlers ● H. Minemann ● J. Pamplona ● J-L. Ferreira ● João de Lagoa ● Joaquim Saial ● José-Augusto França ● Kristina Ohlmeier ● Luís Carvalho ● M. Rodrigues Vaz ● Manuel Baptista ● Manuel Gomes Soares ● Maria João Fernandes ● Mário Elias ● Nuno Chuva Vasco


PRÉMIOS & DISTINÇÕES

HOMENAGENS:

Ahrensburg Rathaus / Salão Nobre (com uma intervenção do Prof. Dr. Konrad Dilger, do Max Blank Institut) Ahrensburg 1981
Município de Lagoa 1982
Sala de Exposição Temporárias do Convento de São José Casa da Cultura de Lagoa

MEDALHAS:

Medalha de Mérito Municipal de Lagoa 1983
Medalha de Prata Filho Ilustre de Lagoa


PRÉMIOS

Prémio de Artes e Letras de personalidades do Algarve.
Prémio da AIRA (Associação da Imprensa Regional do Algarve); 2001
Prémio INTERPARES (Magazine do Algarve), 2002


in BOSTON MUSEUM (USA) - "O Farol de Cacilhas"

Veja meu Slide Show!

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1ª HOMENAGEM AO PINTOR EM 1981 PELA C.M.LAGOA







Ano: 1981
Exposição: Retrospectiva da Pintura de Manuel Gamboa
Galeria: Espaço onde actualmente está instalada a Biblioteca Municipal
Cidade: Lagoa
Observações: Exposição de Homenagem organizada pela C M Lagoa

Coleccionadores que cederam os seus quadros:

Eng. Orlando Moreira Araújo
Dr. Joaquim Alcobia da Silva
Dr. Nuno Cunha Gonçalves
Arq. Keil do Amaral (viúva de)
D. Maria Luísa Barreto
Eng. Manuel Batista das Neves
D. Regina Gamboa (Irmã do artista)
Sr. Américo Correia
D. Elisa Ribeiro

Considerações críticas:
O texto do catálogo foi elaborado por Luís Carvalho:


“Justo é salientar só alguns conferencistas que abordaram a Vida e Obra de Gamboa, como o Dr. João Barrento (com passagem de dispositivos), Dr. Herbert Minnemann, Dr. Konrada Dilger do Max – Plantz Instituto, H. T. Flemming, Dieter Thiele, K H Schöenfeld, etc.

Sem ordem cronológica ou alfabética aqui deixamos alguns títulos de jornais e revistas que publicaram entrevistas, artigos, crónicas ou meros apontamentos sobre Gamboa:

Em língua portuguesa:
Binário, Letras e Artes, Vértice, Elo, Flama, Séculos Ilustrado, Colóquio, Actualidades, Diário de Lisboa, Jornal de Angola, Emigrante, Diário Popular, República, Portugal Ilustrado, Diálogo do Emigrante (Münster), Portugal Popular (Paris), Despertar (Haia), Barlvento, etc. É citado também no livro “Da Pintura Portuguesa” (1959).

Em língua alemã, citamos apenas estes:
Neue Westfälische (Bielefeld), Die Welt, Hamburger Abendblatt, Lübecker Morgen, Frankfurter Rundschau, Szene Hamburg, Bild Zeitung, Hamburger Kulturell, etc.

Desiludam-se os admiradores de catálogos recheados de frases e chavões que têm feito cátedra na nossa praça lisboeta com longas e pomposas citações dos grandes vultos europeus só para consumo interno pois que poucas têm sido as vezes em que “sociólogos de arte” nas suas reservas de caça, vulgo jornais e revistas onde assentaram tenda (não esquecer a rádio e TV), quando chamados a preencher as folhas de luxuosos catálogos de medíocres pintores, oriundos de boas famílias, os catapultam para os píncaros da fama lusitana, ignorando as realidades palpáveis dos verdadeiros pintores só porque dizem não a este anquilosado servilismo.

Do desterro voluntário, de algumas figuras da pintura portuguesa, são responsáveis moralmente, alguns fazedores da crítica que ainda hoje se consome em Portugal. Alguns “críticos” já rompem os tampos das secretárias há longas dezenas de anos pavoneando-se nas mesmas folhas impressas. Monopólios de doutores...

Sem ferir outros nomes que agora não me ocorrem, cito apenas alguns “desterrados” (infelizmente dois deles já falecidos, casos de Mário Eloy e D’Assunção) que deram tremendas sapatadas que estremeceram esse podre Chiado, assim como dos felizmente ainda vivos, como Vieira da Silva, Júlio Pomar, Manuel Gamboa.

Aquilo que aqui vos deixo é o contributo humano, honrando o convite que Gamboa me endereçou para escrever algo sobre ele no catálogo que acompanhará a sua primeira retrospectiva e na sua própria terra natal!

Difícil, porque desejo ficar isento do elogio barato e oportunista que apenas conduz à palmada nas costas, à foto nos jornais, à oferta de um desenho, etc. Mas fácil porque bem o conheço.

Desde 1960 que Gamboa vive em Hamburg, cidade de 2 milhões de habitantes onde cheguei em 1965. A partir desta data não tenho faltado a nenhuma exposição de Gamboa realizada neste país, assim como delas tendo dado notícias para os jornais portugueses. Digamos que a maioria das vezes o têm feito, mas nem sempre com o texto original, assim como olvidarem o nome de quem as escreveu. O hábito faz o monge...dizem, eis porque não mudo nem uma vírgula a um poema recente em que o termino assim:
Parido

Portugal, ainda continua crú!

Estou portanto, absolutamente à vontade para falar na Vida e Obra (após 1965) do pintor Manuel Gamboa, data que iniciámos o contacto fraternal e tão amiudamente contrafernizamos.

Os seus primeiros anos nesta tão germanizada cidade nem (neste tempo tudo era terrível. Registados no Consulado havia cerca de 100 portugueses. Hoje somos 10 mil!), estão repletos de peripécias tão variegadas que bem demonstram o seu carácter. Vendeu quadros ao primeiro comprador que aparecia por aquilo que calhasse, pois alguns “portugas amigos” precisavam de ajuda urgente.

A sua colaboração ao associativismo luso foi intenso. Sócio fundador do extinto Clube, onde fez parte dos Corpos Gerentes assim como da actual Associação Portuguesa em Hamburgo, durante anos. Hoje, encontra-se afastado pois as divisões partidárias destruiram tudo o que até 25 de Abril de 1974 foi levado a efeito em prol de todos os portugueses trabalhadores emigrados nesta cidade!

É pena, mas é uma constante da nossa vivência além fronteiras!

Às suas exposições (anualmente a média cifra-se entre duas a três) podem-se contar pelos dedos os compatriotas que lá comparecem. É triste e lamentável mas a herança que meio século de fascismo nos legou, ainda é presente! Para a maioria dos nossos compatriotas que aqui labutam toda e qualquer manifestação cultural é considerada como desperdício de tempo pois não se arrecadam marcos ou não há copos ou petiscos.

Nesta amálgama de interesses que prolifera em sociedades de consumo, é natural pois a afirmação de Gamboa:” Amigos portugueses, tenho dois ou três!”

A sua integração, como pessoa no meio alemão é total. Como pintor no meio artístico hamburguês é perfeita e harmoniosa, pois impôs-se com as suas exposições periódicas em galerias diferentes que tem contado sempre com êxitos, tanto nas justas referências que a crítica local lhe dedica como até e isto também é importante para quem vive do seu trabalho, a venda dos quadros expostos, atinge percentagens que constituem recordes absolutos. Apenas este exemplo e por ser o mais recente: no edifício da Câmara Municipal de Ahrensburg, cidade a 30 Km de Hamburg, nos mostrou e convenceu uma vez mais, os milhares de visitantes que por lá passaram. Basta citar que cerca de 70 por cento dos quadros expostos foram vendidos! Extraordinário é também o facto de em todas as suas exposições apresentar sempre novos trabalhos na concepção dos temas, na procura das cores, materiais, etc. “Jamais um português, pintor, se tornou tão conhecido de forma tão convincente na R. F. A., como Manuel Gamboa!”

É necessário viver cá. Sem bolsas de estudo, sem mecenas. Igual a si próprio, derrubando o muro da intransigência e frialdade com que são acolhidos todos os artistas estrangeiros oriundos do chamado terceiro mundo.

Anos a fio Gamboa, tem vindo a cimentar a sua posição como pintor nestas longínquas paragens. É de salientar e de louvar pois conseguiu-º

Abro parêntesis para citar o imortal Picasso após a guerra civil na sua pátria, referindo-se à sua obra Guernica, afirmando ao semanário francês “Les Lettres Françaises”: “Os quadros não servem só como objecto decorativo em salas de estar, mas são também uma arma”:

Gamboa, impulsivo como sempre, cometeu vários desagravos aos dirigentes de então, pois uma sua exposição na Galeria Diário de Notícias (Lisboa-58) dois dias após a inauguração, foi encerrada por ordem da PIDE! Desagradou também aos entendidos lisboetas da pintura portuguesa, muitos dados a fabricar ídolos como pincéis de barro.

Ainda em 2.10.75 na entrevista conduzida por Júlio Rodrigues no Diário de Lisboa, afirma com plena razão e conhecimento de causa que: “Todo o pintor português precisa de um fato macaco”.

Alguns destes quadros produzidos entre 1940 e 1960 são como pioneiros que desbravando terrenos até então inóspitos e virgens, mostraram ao Povo, o que um filho deste mesmo povo foi e é capaz de criar.

Se assim não fosse como se compreendia que profundos conhecedores e coleccionadores de pintura (basta atentar em alguns nomes que figuram neste catálogo...) possuíssem há longas dezenas de anos, obras de Gamboa?”

Luís Carvalho Hamburg Nov. 1981

A MATÉRIA DOS SONHOS NA PINTURA DE MANUEL GAMBOA




“(...) la couleur apparait dans sa diversité et sa richesse, comme l’image des richesses substantielles, et dans ses nuances infinies comme promesse d’inépuisables ressources. »
Gilbert Durand – Les Structures Anthropoligiques de l’Imaginaire


José Augusto França sublinhou em 1959 (1) a originalidade e a pujança da pintura de Manuel Gamboa, aspectos que ainda hoje e depois de um longo exílio que o afastou do nosso panorama artístico, a caracterizam: “Brutamente colorista (...) e com uma intuição admirável, ignorando culturas, Manuel Gamboa reencontra uma exuberância que fora de Amadeo Souza – Cardozo”. Em 1960 o pintor instalou-se em Paris onde conviveu com D’ Assumpção e uns anos mais tarde em Hamburgo, onde permaneceu até 1987, ano do seu regresso definitivo a Portugal. Estas largas estadias no estrangeiro enriqueceram a sua experiência, sem que nunca tenha perdido a espontaneidade da sua linguagem rude, entre o real e o fantástico, e apostando nas virtualidades de um cromatismo ostensivo e invasor. O artista criou o seu próprio paradigma estético, evoluindo da figuração para a abstracção, da manifestação expressionista de emoções e sentimentos para um onirismo em que todas estas vertentes se conjugam.

A exposição hoje apresentada revela-nos o universo da pintura como matéria plástica de fantasias oníricas, espécie de reverso de uma realidade que se manifesta inteiramente na sedução das suas substâncias e na palpitação dos seus enigmas. Criaturas plásticas, esfíngicas, silenciosas, compósitas. Máscaras de um universo diurno integrando os fantasmas nocturnos. Fragmentação e metamorfose, a razão partilhando os domínios do sonho, numa osmose entre aspectos inconciliáveis. É desse estranho paradoxo que resolve com mestria, que nos fala o artista, das divisões diurnas e da fluidez de uma possível harmonia amorosa que parece escorregar directamente da intimidade dos sonhos para a matéria atraente e colorida desta pintura. Matéria dos sonhos, saborosamente vibrátil e viva, saindo esplendidamente do tubo, derramando-se, estendida pela espátula, acariciada pelo pincel.

Paisagens de uma labiríntica acumulação em que orgânico e inorgânico se misturam, no assombro de uma realidade que vem de dentro, dos escaninhos da alma. Alma teatral, rodeada de sinais, de símbolos que são ao mesmo tempo frutos, pétalas e centelhas de uma luz quente, ousando acender o esplendor dos aspectos, mesmo quando estes parecem emergir de trevas antiquíssimas. Mutações da alma, misturando-se, lânguida, com tudo o que vive e sonha, com o dia e com a sombra.

Seres de uma fauna exótica que só existe aqui, nos jardins deste universo, destas encenações de uma melancolia, de uma solidão, que nos comunicam um segredo, talvez o da felicidade. Alegria e exuberância contidas, da cor luxuosa. Vermelhos, azuis, verdes, ouros, amadurecendo, brilhando, anoitecendo. Na linha do horizonte, o azul, de uma suavidade mágica, une-se a uma inesperada promessa marítima.

A natureza prodigaliza as suas dádivas, o pintor altera as substâncias, transfigura-as no corpo da pintura. O azul é o cenário de uma pura evasão, o pano de fundo desta ousadia. A ousadia de ser, de se transformar em sinais, coloridas emanações da ausência.

A acumulação, esta caótica desordem, escondem o vazio que ameaça o destino humano, mas revelam ao mesmo tempo uma energia lúdica, um malabarismo necessários e contagiantes.

O artista que nos seus auto – retratos surge com a imagem de um místico e de um saltimbanco ao mesmo tempo, hesita entre a lição do lirismo e a contemplação. Entretanto oferece-nos as suas miniaturas de um insólito paraíso, povoado das incertezas contemporâneas. O mito uniu-se à história nesta pintura e talvez esta o domine. Poderíamos pensá-lo ou senti-lo, não fora a presença, o sortilégio da árvore, que é uma imagem do Cosmos devolvido ao paraíso. Na matéria destes sonhos palpáveis.

José – Augusto França – Colóquio Revista de Artes e Letras, nº 1, Lisboa 1959.

Maria João Fernandes, in Catálogo de Exposição Individual na Galeria de São Bento, 1999

MANUEL GAMBOA: uma pintura dramática de Amor pela Vida



Manuel Gamboa é um artista que, como tantos portugueses, foi praticamente ignorado, no seu País natal, de onde saiu como manifesto de insatisfação perante uma conjuntura político – cultural medíocre e demasiado exígua para as ambições ilimitadas de um homem com a sua grandeza interior.

É ele que, ao retornar a Portugal, se nos revela, sem ressentimento ou soberba, e privilegia com uma pintura crescida e amadurecida numa outra terra mais ampla, perante olhos que viram mais longe. Porém, é uma pintura sem nacionalidade porque o é sem fronteiras, sem limites patrióticos, apenas com a identidade artística e toda a infinita liberdade que o universo da Arte proporciona. Ainda assim, conserva elementos e memórias de cores e luzes que podem remontar à realidade física das origens do pintor que parece saudosamente eternizá-los na tela.

Foi nessa longa permanência no estrangeiro, em Paris e especialmente em Hamburgo, que o pintor sofreu influências de várias escolas e correntes estéticas que viriam a marcar toda a sua Obra, com destaque para o neorealismo, a pop art, o expressionismo quer francês (de Soutine), quer alemão, o cubismo e o abstraccionismo.

Na galeria Santiago, Manuel Gamboa expõe agora as suas últimas telas, plenas de vigor, onde as três últimas correntes se mantêm vivas, acrescidas de características muito pessoais, como a segurança do desenho que marca contornos, definindo a mancha, o cromatismo vibrante que explora toda a potencialidade do pigmento puro, e a luz que modela os volumes, dotando-os de valores de tridimensionalidade quase escultórica que acentuam a diferença entre a figura e fundo.

Se a paleta escolhida se caracteriza essencialmente por cores alegres, todavia, não é possível dizer que as pinturas o sejam. Parece, pelo contrário, existir uma antítese entre o fulgor cromático e uma certa tristeza que se destaca essencialmente na figura humana e que é acentuada pela dimensão monumental que o artista lhe confere.

Com efeito a conjugação das duas assume valores de inquietação e dramatismo que se enfatizam com o empasto da matéria pictórica, um labirinto de pinceladas que criam valores de claro – escuro, gerador, por seu turno, de acidentes visuais que adensam a linguagem e obrigam a uma leitura mais atenta de cada pormenor.

Também o pormenor é, em si, uma característica da pintura de Manuel Gamboa. Cada elemento, cada gesto, cada rosto, são dotados de essencial dimensão simbólica: um pássaro, uma flor, um olhar rasgado ou fechado (quase sempre de frente, lembrando a arte egípcia e o cubismo) um abraço, uma desmultiplicação de cabeças...sempre estrategicamente colocados no ponto de confluência do olhar do espectador e sempre nas encruzilhadas de composições centralizadas. Porém, este simbolismo, mais do que uma influência, é uma expressão muito individual, sem dimensão intelectual (que o artista recusou em Paris) ou linguagem universal. É a codificação de emoções, numa espécie de dialecto pessoal, desenvolvido no contacto com a Natureza e o Homem. É uma expressão de Amor pela Vida.

CÁTIA MOURÃO, Historiadora de Arte e Pintora
Prefácio do Catálogo da Exposição Comemorativa do III Aniversário
Da Galeria Santiago, Palmela, em 2000/1