“(...) la couleur apparait dans sa diversité et sa richesse, comme l’image des richesses substantielles, et dans ses nuances infinies comme promesse d’inépuisables ressources. »
Gilbert Durand – Les Structures Anthropoligiques de l’Imaginaire
José Augusto França sublinhou em 1959 (1) a originalidade e a pujança da pintura de Manuel Gamboa, aspectos que ainda hoje e depois de um longo exílio que o afastou do nosso panorama artístico, a caracterizam: “Brutamente colorista (...) e com uma intuição admirável, ignorando culturas, Manuel Gamboa reencontra uma exuberância que fora de Amadeo Souza – Cardozo”. Em 1960 o pintor instalou-se em Paris onde conviveu com D’ Assumpção e uns anos mais tarde em Hamburgo, onde permaneceu até 1987, ano do seu regresso definitivo a Portugal. Estas largas estadias no estrangeiro enriqueceram a sua experiência, sem que nunca tenha perdido a espontaneidade da sua linguagem rude, entre o real e o fantástico, e apostando nas virtualidades de um cromatismo ostensivo e invasor. O artista criou o seu próprio paradigma estético, evoluindo da figuração para a abstracção, da manifestação expressionista de emoções e sentimentos para um onirismo em que todas estas vertentes se conjugam.
A exposição hoje apresentada revela-nos o universo da pintura como matéria plástica de fantasias oníricas, espécie de reverso de uma realidade que se manifesta inteiramente na sedução das suas substâncias e na palpitação dos seus enigmas. Criaturas plásticas, esfíngicas, silenciosas, compósitas. Máscaras de um universo diurno integrando os fantasmas nocturnos. Fragmentação e metamorfose, a razão partilhando os domínios do sonho, numa osmose entre aspectos inconciliáveis. É desse estranho paradoxo que resolve com mestria, que nos fala o artista, das divisões diurnas e da fluidez de uma possível harmonia amorosa que parece escorregar directamente da intimidade dos sonhos para a matéria atraente e colorida desta pintura. Matéria dos sonhos, saborosamente vibrátil e viva, saindo esplendidamente do tubo, derramando-se, estendida pela espátula, acariciada pelo pincel.
Paisagens de uma labiríntica acumulação em que orgânico e inorgânico se misturam, no assombro de uma realidade que vem de dentro, dos escaninhos da alma. Alma teatral, rodeada de sinais, de símbolos que são ao mesmo tempo frutos, pétalas e centelhas de uma luz quente, ousando acender o esplendor dos aspectos, mesmo quando estes parecem emergir de trevas antiquíssimas. Mutações da alma, misturando-se, lânguida, com tudo o que vive e sonha, com o dia e com a sombra.
Seres de uma fauna exótica que só existe aqui, nos jardins deste universo, destas encenações de uma melancolia, de uma solidão, que nos comunicam um segredo, talvez o da felicidade. Alegria e exuberância contidas, da cor luxuosa. Vermelhos, azuis, verdes, ouros, amadurecendo, brilhando, anoitecendo. Na linha do horizonte, o azul, de uma suavidade mágica, une-se a uma inesperada promessa marítima.
A natureza prodigaliza as suas dádivas, o pintor altera as substâncias, transfigura-as no corpo da pintura. O azul é o cenário de uma pura evasão, o pano de fundo desta ousadia. A ousadia de ser, de se transformar em sinais, coloridas emanações da ausência.
A acumulação, esta caótica desordem, escondem o vazio que ameaça o destino humano, mas revelam ao mesmo tempo uma energia lúdica, um malabarismo necessários e contagiantes.
O artista que nos seus auto – retratos surge com a imagem de um místico e de um saltimbanco ao mesmo tempo, hesita entre a lição do lirismo e a contemplação. Entretanto oferece-nos as suas miniaturas de um insólito paraíso, povoado das incertezas contemporâneas. O mito uniu-se à história nesta pintura e talvez esta o domine. Poderíamos pensá-lo ou senti-lo, não fora a presença, o sortilégio da árvore, que é uma imagem do Cosmos devolvido ao paraíso. Na matéria destes sonhos palpáveis.
José – Augusto França – Colóquio Revista de Artes e Letras, nº 1, Lisboa 1959.
Maria João Fernandes, in Catálogo de Exposição Individual na Galeria de São Bento, 1999
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