domingo, 17 de fevereiro de 2008

A MATÉRIA DOS SONHOS NA PINTURA DE MANUEL GAMBOA




“(...) la couleur apparait dans sa diversité et sa richesse, comme l’image des richesses substantielles, et dans ses nuances infinies comme promesse d’inépuisables ressources. »
Gilbert Durand – Les Structures Anthropoligiques de l’Imaginaire


José Augusto França sublinhou em 1959 (1) a originalidade e a pujança da pintura de Manuel Gamboa, aspectos que ainda hoje e depois de um longo exílio que o afastou do nosso panorama artístico, a caracterizam: “Brutamente colorista (...) e com uma intuição admirável, ignorando culturas, Manuel Gamboa reencontra uma exuberância que fora de Amadeo Souza – Cardozo”. Em 1960 o pintor instalou-se em Paris onde conviveu com D’ Assumpção e uns anos mais tarde em Hamburgo, onde permaneceu até 1987, ano do seu regresso definitivo a Portugal. Estas largas estadias no estrangeiro enriqueceram a sua experiência, sem que nunca tenha perdido a espontaneidade da sua linguagem rude, entre o real e o fantástico, e apostando nas virtualidades de um cromatismo ostensivo e invasor. O artista criou o seu próprio paradigma estético, evoluindo da figuração para a abstracção, da manifestação expressionista de emoções e sentimentos para um onirismo em que todas estas vertentes se conjugam.

A exposição hoje apresentada revela-nos o universo da pintura como matéria plástica de fantasias oníricas, espécie de reverso de uma realidade que se manifesta inteiramente na sedução das suas substâncias e na palpitação dos seus enigmas. Criaturas plásticas, esfíngicas, silenciosas, compósitas. Máscaras de um universo diurno integrando os fantasmas nocturnos. Fragmentação e metamorfose, a razão partilhando os domínios do sonho, numa osmose entre aspectos inconciliáveis. É desse estranho paradoxo que resolve com mestria, que nos fala o artista, das divisões diurnas e da fluidez de uma possível harmonia amorosa que parece escorregar directamente da intimidade dos sonhos para a matéria atraente e colorida desta pintura. Matéria dos sonhos, saborosamente vibrátil e viva, saindo esplendidamente do tubo, derramando-se, estendida pela espátula, acariciada pelo pincel.

Paisagens de uma labiríntica acumulação em que orgânico e inorgânico se misturam, no assombro de uma realidade que vem de dentro, dos escaninhos da alma. Alma teatral, rodeada de sinais, de símbolos que são ao mesmo tempo frutos, pétalas e centelhas de uma luz quente, ousando acender o esplendor dos aspectos, mesmo quando estes parecem emergir de trevas antiquíssimas. Mutações da alma, misturando-se, lânguida, com tudo o que vive e sonha, com o dia e com a sombra.

Seres de uma fauna exótica que só existe aqui, nos jardins deste universo, destas encenações de uma melancolia, de uma solidão, que nos comunicam um segredo, talvez o da felicidade. Alegria e exuberância contidas, da cor luxuosa. Vermelhos, azuis, verdes, ouros, amadurecendo, brilhando, anoitecendo. Na linha do horizonte, o azul, de uma suavidade mágica, une-se a uma inesperada promessa marítima.

A natureza prodigaliza as suas dádivas, o pintor altera as substâncias, transfigura-as no corpo da pintura. O azul é o cenário de uma pura evasão, o pano de fundo desta ousadia. A ousadia de ser, de se transformar em sinais, coloridas emanações da ausência.

A acumulação, esta caótica desordem, escondem o vazio que ameaça o destino humano, mas revelam ao mesmo tempo uma energia lúdica, um malabarismo necessários e contagiantes.

O artista que nos seus auto – retratos surge com a imagem de um místico e de um saltimbanco ao mesmo tempo, hesita entre a lição do lirismo e a contemplação. Entretanto oferece-nos as suas miniaturas de um insólito paraíso, povoado das incertezas contemporâneas. O mito uniu-se à história nesta pintura e talvez esta o domine. Poderíamos pensá-lo ou senti-lo, não fora a presença, o sortilégio da árvore, que é uma imagem do Cosmos devolvido ao paraíso. Na matéria destes sonhos palpáveis.

José – Augusto França – Colóquio Revista de Artes e Letras, nº 1, Lisboa 1959.

Maria João Fernandes, in Catálogo de Exposição Individual na Galeria de São Bento, 1999

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