domingo, 17 de fevereiro de 2008

MANUEL GAMBOA





Manuel Gamboa pertence à geração de pintores neo-realistas que teve de abandonar Portugal para continuar a sua obra.

Nascido em Lagoa (Algarve), em 1925, depois de uma individual na Galeria DN, em 1958, decidiu partir, dois anos mais tarde, para Paris, onde não ficou muito tempo. Escolheu Hamburgo (Alemanha) e, decorridos que foram 30 anos, voltou ao seu país natal, não para ficar, mas para se dividir entre estas duas terras.

É, de facto, na Alemanha que a sua pintura tem bastante significado. Os seus temas, apesar de temperados por uma certa disciplina germânica, mostram que se mantêm fiéis a uma determinada linha de pensamento. A mesma com que o pintor saiu de Portugal.

Na representação do ser humano as suas obras inspiram-se na expressão do corpo e do rosto, quase sempre humilhados, submissos e silenciosos, mesmo quando enquadrados em temas festivos. As suas personagens testemunham o sofrimento moral, voltadas para o vazio ou para uma realidade insondável, como o sentimento de uma perdição. Mais próximas do Além do que da morte, elas movimentam-se num circo fora do tempo.

Feitos de vida interior, estes seres reflectem-se no olhar; os olhos são dois poços rasgados pelo pincel, que nos seguem continuamente, nos criticam, ou ainda nos gozam sem piedade. Desfiguradas pela própria angústia, estas imagens frágeis parecem dotadas de fibras emocionais: símbolo de uma convicção pessoal? Quem sabe? Esperam algo, talvez uma força superior, positiva e construtiva que não chegará com facilidade.

No entanto, esta pintura selvagem não deixa de ter, contraditoriamente, uma tónica expressiva de alegria de viver. Gamboa diverte-se a criar os seus filhos e a dar-lhes os brinquedos mais díspares possíveis (aqueles a que provavelmente o pintor nunca teve acesso). Brinquedos e filhos passam por nós rindo e fazendo caretas porque estamos do lado de cá, vivos, cansados e desanimados.

As tonalidades sempre vivas, com grafismos pretos para delinear e animar, invadem os espaços, já bem preenchidos de uma multidão de cores em movimento, para formularem vibrações explosivas de Paraíso Perdido convertido em pintura que faz a festa. Também há muita eficácia, talento e audácia nas composições.

Reconhecíveis que são as figuras neste enquadramento de cores, elas inserem-se numa composição abstracta onde o espaço, suspenso entre a plenitude e o nada, se integra numa só cor, dada no princípio. Assim Gamboa põe em cena a ambivalência de uma visão intuitiva; os parâmetros obscuros da mente ou o enigma de uma substância. O conteúdo acorda a consciência de uma vida interior, fazendo ressurgir o índice de uma memória colectiva.

Poder-se-á dizer, neste caso, que se trata de um modo de conhecimento, como uma forma de conjuração dos fantasmas do artista, e ainda, como o meio de conseguir um equilíbrio pessoal, muito peculiar.

Ávido de obter qualidades emocionais. Gamboa realça os paradoxos do efeito visual: numa desenvoltura contraditória, a linha apaga o que seria de esperar que privilegiasse ou evocasse, revelando os meandros do instinto criador, é nesse momento, ao mesmo tempo lúcido e ambíguo, que o pintor encontra o centro da estabilidade.

As linhas afloram a untuosidade da matéria e realçam o sentido de ascensão ou movimento fugidio. Gamboa parece desafiar as leis do visível, criando sensações, sinais ou ainda imagens inéditas.

Dotado de uma análise figurativa, e de uma observação do real, a sua tentativa (sondagem) deixa transparecer a expressão de uma necessidade interior; cada elemento refere-se a uma existência autónoma, independentemente do contexto que a rodeia. Nem mensagem, nem anedota...mas desejo de afirmar, pela e na pintura, a existência de uma visão fictícia.


DN – 13.1.91


Por: Margarida Botelho, in “80 Artistas em Portugal”

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