domingo, 17 de fevereiro de 2008

A OSGA JOAQUINA...




Um crítico que nunca viu uma osga na parede não entende a actual pintura de Manuel Gamboa...

Gamboa confessava-me há dias que uma tela em branco em cima do cavalete mete-lhe medo: precisa encher imediatamente a paleta de cores e então uma força demiurga agarra-lhe nos pincéis e todo o Universo entra-lhe de rajada pelo atelier adentro, para dissipar o tenebroso nevoeiro branco da tela! A sua pintura vai surgindo, quase onírica, numa serena alegria de cores e formas, onde o figurativo e o abstracto se equilibram, num expressionismo panteísta. Uma lagarta, o canto do galo, uma folha, uma memória longínqua, um triste arlequim colorido, uma página em árabe de um velho livro de visitas, o céu azul riscado por um pássaro branco, o véu da noite rasgado de estrelas, uma nesga de mar ao fundo, os ecos de uma paixão, de muitas paixões, os seios generosos da serra ao longe, a negra Joaquina à noite na parede do atelier a caçar insectos, os sinais eternos, os olhos sempre de frente, mesmo em rostos de perfil, a afastar maus-olhados e a espelhar as almas...Tudo isto se harmoniza, num todo muito estranho para a razão, mas muito coerente para a intuição.

Se o Gamboa como homem é ateu, como artista é um místico.

O processo criativo do Gamboa tem um forte carácter mediúnico. O seu génio (como qualquer génio) não cria nada de novo: ele é um canal que nos revela as dimensões invisíveis da natureza. Na verdade, nada é abstracto na sua pintura. Ele agarra-nos a sensibilidade para um mergulho no fundo desses mares desconhecidos que há em tudo, no céu e na terra, principalmente nas coisas mais simples, e mostra-nos a beleza, o pulsar da vida nesses “imensos corais ocultos”, onde existem bem reais e concretos todos os arquétipos, todas as imagens que inspiram os mais sublimes artistas, mesmo aqueles considerados os mais abstractos dos abstractos.

O Gamboa também sabe que os verdadeiros artistas não nasceram para ter honrarias: o seu génio tem de estar acima dessas ninharias, pois um artista em terra de cegos não deve ser um rei, mas um profeta com a imensa responsabilidade de iluminar a nossa insignificância de vermes, inspirando-nos a tecer um casulo de emoções verdadeiras: o único santuário onde o homem pode cumprir a sua metamorfose desde o caos animal ao cosmos divino.

João de Lagoa

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