domingo, 17 de fevereiro de 2008

UM CÂNTICO À VIDA



...ele havia de pintar um cântico à vida! Gamboa, Manuel Gamboa, o pintor, o artista plástico e o homem, têm vivido sempre juntos. Vêm de longe, do tempo em que a vivência (grupal e boémia) e os actos exibitórios dos artistas portugueses reflectiam – e davam-lhe interpretação plástica – o vigor contestatário dos intelectuais, traduzido em expressões visuais do afrontamento e do combate, contra o racionamento cultural, imposto à sua pátria pelo regime pré-histórico de Salazar.
Conheci-o (pela mão de Artur Bual), nesse ano distante de 1959, na ocasião em que a polícia política lhe interrompera – nunca se saberá porquê (?) – uma das suas primeiras mostras individuais de desenho e pintura . O nosso efémero relacionamento estreitar-se-ia, e uma grande empatia acabou ficando, intacta e difusa, suspensa, no ar, reminiscente da convivialidade néon-realista do Café Gelo e omniversal da Brasileira do Chiado, para onde convergiam as mais peregrinas figuras da cultura lisboeta da nossa contemporaneidade.
Entre o Gamboa de hoje e o de então, são escassas (conquanto perceptíveis) as diferenças, quer na postura, perante a Arte, quer, de atitude, perante a Vida, como se a eternidade lhe estivesse mentalmente diluída, no âmago do ser.
Numa época em que as cores delirantes eram, geralmente, tímidas, na pintura vulgarmente exposta, já os seus quadros se distinguiam berrando alto, na ginástica contorcionista, algo caricatural e primeva das suas formas, subjugadas à estrutura livre de um desenho muito fluido e, paradoxalmente, firme, na sua caligrafia.
Então – bem menos que hoje – Gamboa sentia-se estrangeiro, amordaçado, cheio de uma tremenda vontade de atravessar fronteiras e respirar o sonho libertário do anarco-surrealismo, dominante nos grupos que, em Lisboa, integrava , na luta contra as políticas de caixinha, as cliques e capelas (os mini-lobbies dessa altura).
Por isso se passou para Marrocos, saltaria para Paris e acabou, retido por amor, durante décadas, em Hamburgo , onde fez carreira, antes de regressar e se fixar, no reduto algarvio de Vale d’el Rei (perto de Ferragudo, sua terra natal), em Lagoa.……………………………………………………………………
As obras que, hoje e aqui, são exibidas – na Galeria que tem por patrono o seu dilecto amigo Artur Bual – evidenciam-no como um dos casos mais verdadeiramente atípicos da pintura portuguesa mais notável, em meio século, pela sua originalidade autêntica, pela genuinidade elementar do seu processuário técnico, na sintaxe da sua linguagem, na semântica da sua expressão comunical.
Não se tratará, senão, afinal, de páginas únicas de uma biografia autografada, edificadas sobre tela, em composições de grande simplicidade. Só isso – por força da sua natureza – o impõe à notabilidade.
Cada uma dessas páginas é um livro compactado, elaborado a partir de marcas residuais profundas, onde se projectam, com singular candura poética, a vestigialidade memorial recorrente da sociedade e dos universos contemporâneos, convertida na perene simbologia de pictogramas poéticos. E eles surgem organizados como imagens-fetiche, estruturados sob o rigor da mais depurada inspiração, porventura tão primitiva como a da arte totémica , associada à exactidão da escrita hieroglífica, conjugada a caracteres alfanuméricos árabes e sino-nipónicos, latinos e cirílicos, onde se radicam mensagens compactadas da sua jovialidade, do seu tendencialismo erótico-sensual e desse raro sentido epicúreo, que nunca o abandonará. ...ele havia de pintar um cântico à Vida!


José-Luis Ferreira - Lagoa, Março, 2005

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