domingo, 17 de fevereiro de 2008

MANUEL GAMBOA NAS PALAVRAS DUM POETA AMIGO



Foi nos anos 50 que conheci Manuel Gamboa em Lisboa. Nessa época a vida cultural e artística era intensa, com tertúlias assíduas nos cafés, jornais com suplementos regulares de artes e letras, revistas literárias diversas, grupos de teatro e cineclubes que desenvolviam uma actividade cultural importante, não obstante as limitações impostas pelo antigo regime. Estas associações e tertúlias eram verdadeiras universidades abertas, onde todos aprendiam tudo uns dos outros, nelas se tendo formado toda uma geração de poetas, romancistas, ensaístas, críticos, pintores e cineastas que viria posteriormente a afirmar-se. E havia uma sede enorme de cultura, muita luta e sonho, entusiasmo e ideais.

Foi nessa altura que conheci Manuel Gamboa e que a nossa amizade se formou, conservando-se ao longo de todos estes anos, não obstante tantas e tantas mudanças que o mundo sofreu à nossa volta desde então.

Encontrei desde sempre nele uma grande determinação pela pintura, força e vontade de seguir em frente na concretização do seu projecto de vida, apesar de todas as dificuldades semeadas pelo seu caminho.

Muitas vezes subi as escadas da água furtada onde vivia no Bairro Alto para ver os seus trabalhos. Outras vezes ficava a vê-lo pintar, a espalhar as linhas e as cores na tela, assistindo ao nascimento dos temas expressos com a sinceridade da sua personalidade vigorosa e apaixonada pela vida. Uma pintura aplicada na sua expressão, ao mesmo tempo misteriosa e rigorosa, alimentada por uma imaginação que procura captar os seres e as coisas e revelar-nos, pela síntese de tudo o que as linhas e a composição cromática podem exprimir, o reflexo da alma humana e o dramático e surpreendente sentimento de viver, a busca apaixonada do seu sentido poético.

Os traços corridos e o prazer da cor reflectiam o seu individualismo, mas também o seu sonho de abarcar todo um universo que só a imaginação pode alcançar, paisagens que nunca vimos, pessoas que nunca existiram, a luz perdida na desordem ou na harmonia, a fulgurância evidente do silêncio de um mineral, as ruas de uma cidade virtual, a síntese das pessoas em um só ser, enfim, a expressão dos sentimentos mais perplexos da observação da natureza e que ela pode inspirar.

O seu sonho universalista e o desejo de viver num mundo que sempre acalentara e o solicitava levaram-nos a deixar o País em 1960, na busca do enriquecimento da sua experiência humana e artística.

E assim foi até Paris, mas o desencanto proporcionado pelos círculos da emigração que aí conheceu e pela pintura cosmopolita incaracterística que aí viu acabou por o desencorajar. E decidiu ir mais longe, até Hamburgo, de que ouvira falar como uma cidade enorme, dinâmica, cheia de oportunidades e, também, com um rio.

Acompanhei esta sua fase difícil de adaptação e integração, através da correspondência que trocávamos. Foi uma luta de sobrevivência e renascimento para uma nova vida, que acabaria por o recompensar com o reconhecimento do seu talento.

Depois da minha ida para Paris em 1964, encontrámo-nos por diversas vezes, o que me deu oportunidade de continuar a seguir a sua carreira e de conhecer diversos trabalhos seus. E tive assim o grato prazer de me congratular com as manifestações de apreço e louvor que lhe eram testemunhadas pela qualidade e originalidade da sua obra. Obra que alia a capacidade inventiva do iberismo com a assimilação da força e disciplina germânica, mas que se manteve sempre fiel e inspirada nos temas memorizados na sua raiz portuguesa, figuras e rostos silenciosos que nos fixam sem conseguirmos ver-lhes os olhos, bem como todo o carnaval da nossa vida.

Não são muitos os artistas entre nós que, como Manuel Gamboa, conseguem criar uma obra tão extensa, meritória e original, tudo alcançando a partir do quase nada, apenas pelo seu génio, trabalho e perseverança. Por isso ele nasceu, não para nos deixar, mas para ficar para sempre entre nós.


Fernando Ilharco Morgado, in catálogo da Exposição – Retrospectiva de Manuel Gamboa, Conv. S. José, 1995

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