domingo, 17 de fevereiro de 2008

UM GRAVADOR PORTUGUÊS EM HAMBURGO



Na torrente diária de conferências e debates, exposições e colóquios que animam a vida cultural da grande cidade hanseática, um acontecimento que não pode ignorar-se: o pintor português Manuel Gamboa expõe numa galeria de Hamburgo (Café Latin) as suas criações mais recentes, uma série de mais de trinta linóleos a cores, entre os quais se destaca um tríptico de dimensões excepcionais nesta técnica (1,28m de altura e mais de 3m de comprimento total).

Não é muito frequente depararmos em cidades alemães com exposições de artistas portugueses (esperemos que o acordo cultural recentemente firmado entre os dois países venha melhorar a situação, neste e noutros campos). E o encontrar-se um nome português é uma vergastada salutar no espírito de quem embora afastado do país, procura não perder o contacto com as mais importantes manifestações espirituais portuguesas (o que nem sempre acontece, porque nem sempre é fácil). Recordo com admiração e o entusiasmo que senti quando, no Verão de 1964, deparei com uma exposição de gravuras de Bartolomeu Cid numa escola de uma pequena cidade da região do Ruhr (Marl). Como Bartolomeu Cid ali foi parar, não sei. Sei que ele lá estava, e é o que importa. Mas não nos iludamos, porque satisfações destas são raras. O panorama cultural português é mal ou falsamente conhecido na Alemanha. E quando algo aparece, é mal compreendido, toma-se a parte pelo todo, aventuram-se juízos de conjunto a partir de manifestações isoladas e de modo algum representativas (lembre-se o caso recente de um crítico do jornal “Die Welt” que, partir da tradução alemã da “Vindima” de Torga, fazia toda uma série de considerações gerais – e falsas …sobre a literatura portuguesa actual). Um campo em que o conhecimento de Portugal se vem generalizando mais é o turismo, graças a uma propaganda orientada pelas entidades responsáveis e interessadas. Aqui – no campo cultural – como ali – no do turismo – é preciso fazer “propaganda” – por meios diferentes, utilizando canais de divulgação diversos, como é evidente, mas, de qualquer modo, fazendo essa divulgação necessária. Muitas vezes é feita mais pela parte alemã do que pela portuguesa.

É, pois, de assinalar mais esta centelha portuguesa em terras germânicas, que é a actual exposição de Gamboa. Manuel Gamboa vive em Hamburgo há cerca de cinco anos. Esta afirmação directa, estilo relatório, encerra um significado mais profundo do que aquele que deixa entrever à primeira vista. Não é fácil para um pintor livre e estrangeiro “viver” (e portanto pintar...e vender) em Hamburgo. Para o compreendermos teremos de conhecer o público e o meio hamburgueses, fechados em si, uma aristocracia comercializada e uma massa mecanizada e materialista que, se por acaso compra quadros, o faz com a intenção de que esse quadro vá contribuir para a Gemutlichkeit (palavra difícil ou impossível de traduzir que contém algo de conforto burguês, arranjo e ordem convencionais...) da sua casa. E isto nem sempre o verdadeiro artista lhe pode oferecer (e Gamboa não vai, certamente, ao encontro desses desejos). Há, depois, as élites, que criticam, apreciam, discutem – mas não compram. Há ainda toda a série de dificuldades e obstáculos que o artista estrangeiro, só numa cidade como esta, encontra para expor os seus trabalhos e se tornar conhecido. “É mais fácil um pintor tornar-se conhecido em Portugal num ano, do que em Hamburgo em dez”, diz-me Gamboa na última visita que lhe fiz e durante a qual, num bate-papo de cinco horas, ele me leu algumas páginas soltas de um possível livro de memórias – por enquanto manuscrito de gaveta – em que transparece a imagem que de Hamburgo ele se faz. Imagens de ruas, de pessoas cinzentas e monótonas, asfixiantes ou libertadoras, por entre as quais o pintor passeia, guiado pela mão leve, imaterial, da sua intuição artística – do seu “arlequim de duas máscaras”, como ele próprio lhe chama numa das passagens dessas páginas manuscritas. Nestes escritos, como nos quadros, transparece uma dualidade sempre presente em Gamboa: um passado morto-vivo e um presente espiolhado e vivido intensamente, o Mediterrâneo e o Norte da Europa, a criança naïve e o adulto experimentado, a poesia do deleite e a poesia da violência. E, como elo de ligação, um profundo conteúdo humano e uma acentuada força de expressão, que estão na base de toda a sua actividade artística.

A presente exposição de Gamboa é a segunda que realiza em Hamburgo (a primeira, em que apresentou óleos, teve lugar no Verão de 1964), e é o resultado de estudos pessoais recentes sobre os problemas e a técnica da gravura, que se materializaram na colecção de linóleos a cores, patentes nesta mostra.

Não era fácil – nem acertado – procurar filiar estas últimas criações de Gamboa neste ou naquele pintor ou movimento modernos. Já um 1959, criticando em “Colóquio” o 1º Salão de Arte Moderna da S. N. B. A, José-Augusto França se referia a Gamboa nos seguintes termos: “Brutamente colorista...e com uma intuição admirável, ignorando culturas...” (o sublinhado é meu). Podem, no entanto, notar-se nestes linóleos traços evidentes de um convívio com os expressionistas alemães. Há mesmo duas gravuras que o autor associou directamente a nomes de pintores alemães: A Macke e Max Beckmann (também no mesmo artigo de 1959, José-Augusto França escreve ainda que “Gamboa reencontra uma exuberância e uma violência expressionista que fora de Amadeo de Sousa-Cardozo”).

Para além, e acima de quaisquer influências há, porém nestes linóleos a expressão de uma experiência e de uma técnica pessoalíssimas. Transparece neles essa síntese (ou, como disse um crítico alemão na abertura da exposição, a concretização de uma Wahlverwandtschaft, ou “afinidade electiva”) de dois mundos diferentes que foram assimilados no espírito do artista e plasmados em mancha de cores e vazios: o mundo do Sul e o mundo do Norte, o Algarve e Hamburgo, o passado ainda e sempre espicaçante e vivências actuais intensamente experienciadas e detalhadamente captadas e transmitidas numa expressão abstracta de harmonias de cores, de esquemas formais, de signos, números e nomes, que preenchem o espaço num bailado desordenado, mas em que é possível descobrir, para cada gravura, uma orientação dos motivos pictóricos segundo certas linhas fundamentais, e para o todo uma unidade formal.

Por vezes irradiando, explodindo a partir de um núcleo central, outras vezes pairando dispersos por todo o espaço, as manchas e traços brancos, não impressos, sobrepõem-se por vezes – quase sempre – pela sua importância na economia da gravura, às zonas impressas a cores. Tomam por vezes a forma de letras, signos ou palavras inteiras. Essas manchas e traços são de importância fundamental para a compreensão do “movimento” da superfície do quadro e traduzem, quando transplantados para o campo do “letrismo”, quer uma intencionalidade de raiz emocional, quer uma contribuição de carácter decorativo ou um apoio expressivo para a linguagem das cores que, apesar da evolução efectuada com estes linóleos, continua a ter papel de relevo na obra de Gamboa. Servindo-se de uma linguagem formal puramente abstracta (à excepção do grande tríptico), este linóleos de Gamboa não se desumanizam nem se esterilizam, antes vive neles uma fecunda animação de motivos simbólicos que lhes conferem um carácter vital e espontâneo. José-Augusto França pisou talvez uma tecla acertada ao dizer que Manuel Gamboa “ignora culturas”. Uma outra tecla que me parece também acertada e cuja nota se eleva, na sua intensidade, acima das outras, foi aquela em que, aquando da primeira exposição de Gamboa em Hamburgo, tocou o crítico de artes plásticas do jornal “Die Welt”, Hans Teodor Fleming, ao afirmar: “Sente-se que este artista é um temperamento de pintor, impulsionado por uma autêntica necessidade de pintar”. Aos dez anos pintava Gamboa no Algarve, sob o incitamento de um esquecido Ti Inácio, o seu primeiro quadro! (Um retrato de camponês, hoje na posse do Arquitecto Keil do Amaral). Hoje vive, independente, na sua revolta num espaço norte – europeu, que não é o seu, contra o qual ele reage, mas cuja essência não deixa de captar, para a transportar para estas suas últimas gravuras.


João F. S. Barrento, in Jornal de Letras e Artes, nº 244, 15/6/66, Lisboa

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